por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
A Humanidade inteira agindo como o Narciso do mito grego: eis o que Sigmund Freud diagnostica, com o frio escalpelo de sua razão crítica, quando fala nas três feridas narcísicas que até hoje sofremos como efeitos das revoluções científicas. Fernando Savater, em As Perguntas da Vida (Ed. Martins Fontes, 2001), refere-se a elas como “três grandes humilhações teóricas” e oferece-nos uma boa síntese do argumento freudiano:
“Desde que Darwin tornou pública sua teoria da evolução do homem a partir de outras formas de vida animal, nossa filiação zoológica se transformou em doutrina científica acatada quase universalmente. Digo ‘quase’ porque ainda há obstinados que, por razões religiosas, se negam a assumir essa origem pouco ilustre. (…) Na época moderna, nós, humanos, tivemos que assumir três grandes humilhações teóricas, as três vinculadas à ciência e as três frontalmente opostas aos dogmas religiosos.” 1
A hipótese geocêntrica (Ptolomaica) é a mais desacreditada das três hipóteses narcísicas (centralidade da Terra no Cosmos, proveniência divina do ser humano, racionalidade como característica humana que nos torna superiores às bestas) que foram confrontadas pela ciência da modernidade – três afrontas ao narcisismo emblematizadas por Copérnico, Darwin e Freud. O geocentrismo é o único destes narcisismos que realmente caiu por terra: hoje, qualquer um que sustente ser a Terra o centro imóvel do Universo periga ser considerado um lunático e ser encaminhado ao psiquiatra. Quase não há ateus no que diz respeito à crença no sistema solar e na posição da Terra como astro que gira ao redor do Sol. Copérnico venceu.
Ou seja: é quase unânime a convicção de pertencermos a um arranjo cósmico em que giramos em órbita ao redor de uma estrela dentre bilhões de outras, sendo nosso Sol o autêntico centro ao redor do qual rodamos. Longe de ser centro, a Terra é um corpo de massa irrisória quando comparada ao corpo mais massivo de nossos arredores, o poderoso Sol que arrasta os planetas de sua vizinhança em seu turbilhão gravitacional: Mercúrio,Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno (e quiçá Plutão, que alguns astrofísicos recentes quiseram chutar da primeira divisão e expulsar da companhia dos planetas!): todos estes planetas estão fadados ao mesmo destino, o de girarem ao redor de seu poderoso senhor estelar, este que não cessa sua torrencial chuva sempiterna de céleres raios e transbordâncias de calor sobre nós.
Uma das melhores obras já escritas sobre o tema da nova cosmologia, pós-geocêntrica e que admite uma pluralidade de planetas e estrelas, saborosa pérola da literatura proto-iluminista, descreve um homem e uma mulher que reúnem-se debaixo das estrelas por 6 noites de serão, conversando animadamente debaixo dos céus estrelados. Trata-se do fascinante livro de Fontenelle (1657 – 1757), Diálogos Sobre a Pluralidade de Mundos. Neste escrito tão influente sobre o Século das Luzes (e que exerceu muito fascínio sobre Voltaire), Fontenelle transmite-nos uma descrição do cosmos que estarrece o leitor: é um cosmos de uma grandiosidade e de um esplendor aumentados por um redespertado senso de enigma ao qual a indecifrabilidade do universo imenso nos condena.
O que enche os personagens de uma assombrada curiosidade e de um impetuoso espírito de especulação é o enigma cósmico proposto pela noite: quando o Sol, com seu poderio ofuscante, cessa de iluminar um certo trecho da Terra, já que esta dançou em sua rotação para a metade escura de sua jornada, então manifestam-se diante de nossos sentidos uma profusão de astros. E a obra de Fontenelle parece tanto ser fruto do espanto diante das estrelas, por um lado, quanto parece ter sido motivada, por outro lado, por um desejo de disseminação do assombro diante da possibilidade de que muitas destas estrelas possam ter, girando ao redor delas, outros mundos habitados por seres vivos. Fontenelle manifesta neste texto uma inteligência repleta de sagacidade, senso de humor e fina capacidade crítica. Uma singela troca de frases serve para ilustrar o ponto:
“- Amo as estrelas e reclamo bastante do Sol, que as apaga a nossos olhos! – disse ela.
– Ah! – exclamei – não consigo lhe perdoar que me faça perder de vista todos esses mundos.”2
O personagem de Fontenelle, fino ironista, com verve aristofânica, possui uma capacidade anormal de zombar graciosamente dos filósofos, ainda que saiba que é um deles. Perplexo diante dos astros, como costumam ficar de praxe os amantes da sabedoria – como Tales, Pitágoras, Pascal, Galileu etc., Fontenelle é mestre em apontar para as limitações do nosso intelecto e as lacunas no nosso saber. E sabe que são os limites do saber e os desejos do coração aquilo que instiga-nos a fabricar respostas míticas que, longe de servirem como explicação da realidade tal como ela é, servem mais é para lisonjear nosso amor-próprio, inflar nossos egos e deixar-nos narcisisticamente narcotizados com nosso próprio mérito imaginário.
“Toda a filosofia, disse-lhe eu, está fundada apenas sobre duas coisas, o espírito curioso e os olhos fracos; pois se tivésseis olhos melhores do que os que tendes, veríeis se as estrelas são ou não são Sóis que iluminam outros mundos; e, de outro lado, se fôsseis menos curiosa, não vos preocuparíeis em sabê-lo, o que daria no mesmo: mas queremos saber mais do que vemos, e aí reside a dificuldade…
A nossa loucura é acreditar também que toda a natureza, sem exceção, é destinada a nosso uso; e quando perguntamos a nossos filósofos a serventia desse número prodigioso de estrelas fixas… eles nos respondem friamente que servem para lhes agradar a vista. Nessa base, a princípio não faltou quem imaginasse estar a Terra necessariamente imóvel no centro do universo, enquanto todos os corpos celestes, que eram feitos para ela, davam-se ao trabalho de girar em volta para iluminá-la.”3
O que eu gostaria de analisar neste artigo exploratório é a hipótese de que não há nada de mal em perder ilusões narcísicas, muito pelo contrário: a sabedoria e o esforço por conhecer a verdade o exigem. Em outros termos: pode ser muito positivo nós nos desembaraçarmos de noções auto-congratulatórias mas falsas a respeito de nossa excepcionalidade e nossa superioridade, que supostamente ultrapassam tão imensamente à dos reles animais. Talvez estejamos mesmo amplamente necessitados de confrontar nossas ilusões supremacistas e nossas práticas de domínio calcadas em especismo e antropocentrismo. Ilusão supremacista danosa como aquela que leva alguns (na verdade, muitos, demasiados!) humanos a auto-proclamaram-se criaturas forjadas por uma divindade perfeita, onipotente e sempre justa, e à imagem e semelhança Dela – vai ser Narcisinho assim no Hades ou no Inferno, cara-pálida!
Contestando o narcisismo que subjaz à ideologia criacionista, Stephen Jay Gould, em um livro de ousados ensaios onde seu pensamento é propulsionado pelo materialismo darwinista e pela teoria evolucionista, pontua que “a perspectiva evolucionista de Darwin é um antídoto à nossa arrogância cósmica”:
“I believe that the stumbling block to the acceptance of Darwin’s theory does not lie in any scientific difficulty, but rather in the radical philosophical content of Darwin’s message – in its challenge to a set of entrenched Western attitudes that we are not yet ready to abandon. (…) Darwin applied a consistent philosophy of materialism to his interpretation of nature. Matter is the ground of all existence; mind, spirit, and God as well, are just words that express the wondrous results of neuronal complexity. (…) The true Darwinian spirit might salvage our depleted world by denying a favorite theme of Western arrogance – that we are meant to have control and dominion over the earth and its life because we are the loftiest product of a preordained process. (…) Darwin’s evolutionary perspective is an antidote to our cosmic arrogance.” 4
Teoria supostamente anti-arrogância, que dá socos em Narciso até que ele vá a nocaute, o Darwinismo ganhou corpo com a publicação, em 1859, de As Origens das Espécies. Ali encontramos a argumentação detalhada e brilhante em defesa de uma das ideias científicas mais revolucionárias a terem triunfado, pela força de seus argumentos e pela profusão de suas evidências empíricas, como verdade factual nestes últimos séculos.
Criacionistas ainda existem, é claro, mas nunca na História estiveram tão desacreditados – e talvez não haja figura que mais mereça crédito por ter lançado tanto descrédito sobre o credo criacionista que ele, o naturalista inglês Charles Darwin. Mas a pergunta que não quer calar é: será arrogância dos darwinistas supor que encontraram a chave explicativa da vida em toda a sua diversidade, enquanto todos os teólogos e crente do passado apenas deliravam?
CHARLES DARWIN EM CARNE-E-OSSO NO FILME DE AMIEL
O fascinante filme Creation, de Jon Amiel, descreve os dramas interpessoais e familiares de Darwin. A começar pelo costume de Charles de narrar para sua filha algumas estórias épicas a respeito de crianças indígenas que caíram em posse de conquistadores europeus que tentaram inculcar-lhes valores cristãos para domar-lhes os corações selvagens. Vemos duas crianças indígenas serem ensinadas a usar garfo e faca, doutrinadas a respeitar as autoridades militares masculinas, a ponto de tornarem-se crianças tão obedientes e civilizadas que são levadas até o trono da Rainha da Inglaterra.
Então, vestidos à européia, com toda a pompa aristocrática, as crianças que o Capitão Fitzroy pretende ter “civilizado” são levadas de volta à sua terra de origem. Os europeus, certos da superioridade de sua civilização, pensavam não haver melhor meio para ganhar os selvagens para a “causa de Deus” do que mostrar-lhes suas crianças transformadas em God-fearing christians. Mas logo que põe os pés nas praias em que por toda a sua infância correram, pularam e banharam-se, as crianças abandonam de imediato as roupas e os adereços de seus colonizadores, retornando de modo entusiástico à sua nudez primeva e à sua tribo de origem. Os valores cristãos não colaram.
Darwin, o homem de carne-e-osso, interpretado por Paul Bettany (o Thomas Edison Jr. de Dogville), aparece-nos no filme como alguém que é uma ovelha negra da família. O filme é um retrato de uma longa batalha ou cabo-de-guerra entre, de um lado, o conformismo e a auto-censura, que levam-lhe a adiar a publicação de seu magnum opus com temores de ofender os religiosos (a começar por sua própria esposa e por muitas pessoas de seu meio social), e, de outro lado, o ímpeto revolucionário de publicar e tornar acessível ao conhecimento comum uma teoria muito bem-fundamentada e amplamente referendada pela experiência, destinada a transformar para sempre a compreensão da Humanidade sobre a vida que evolui neste planeta.
Darwin destoa de sua esposa, interpretada no filme por uma austera e devota Jenniffer Connelly, o que manifesta-se logo nas primeiras cenas: na hora do jantar, antes de atacarem a sopa, a mãe da família entoa uma prece, e Charles é o único a não dizer amém quando ela termina. Emblema memorável: Darwin é um homem sem améns.
Não se trata de colar em Darwin, de modo apressado e simplista, o rótulo de ateu, achando que isso resolve tudo, pois nossos problemas ainda nem começaram. Em 1858, A Origem das Espécies ainda não havia sido publicado e Thomas Huxley (1825 – 1895) faz uma visita a Darwin na qual sublinha, como mostra de modo bem enfático a cena do filme Creation (minuto 13-14), as consequências religiosas de sua teoria, o que T. Huxley resume dizendo: “meu caro, você matou Deus.” Algumas décadas depois, ainda que não dê sinais explícitos de referir-se ao impacto de Darwin em sua época, Nietzsche também dirá: “Deus está morto”. Uma crença caía em crescente descrédito. O criacionismo estava em maus lençóis.
Darwin e Thomas Huxley não tem a mesma postura diante do problema. O avô de Aldous Huxley considera ótimo que a religião perca seu poderio para a ciência, de modo a “nos vermos livres dos malditos bispos e suas ameaças de punição eterna.”5 Já Darwin rebate ao ateísta radical diante dele que a sociedade tira boa parte de sua coesão social das ações do Igreja. Darwin mostra-se temeroso quanto às consequências da corrosão deste poder tradicional. Recalcitrante, adia e adia a publicação de sua obra, prevendo a imensa polêmica que ela causaria, inseguro quanto aos efeitos que poderiam advir da teoria evolutiva.
A Natureza que emerge da teoria darwinista é um campo-de-batalha. Darwin filia-se a uma filosofia da existência agonística, na qual quase não se encontram traços da propalada misericórdia divina, já que quem “reina” e opera em todo o seu sistema não é nenhum deus onipotente mas a sobrevivência do mais apto. Aqueles que escapam da morte precoce – aquela que ocorre antes do período reprodutivo, por exemplo – são os que melhor adaptam-se ao ambiente, o que tem a ver com a loteria genética que premia alguns e pune outros, e isso sem parecer levar em consideração os valores morais. Darwin não pertence somente à biologia ou às ciências, tem muito a dizer em matéria de filosofia e ética. Pois sua Natureza não é animada de dentro por uma moralidade, isto que alguns humanos civilizados tanto insistem em julgar que pertence às coisas mesmas, ao Universo inteiro, ou ao menos a seu suposto Criador e Regente…
Darwin foi um aprendiz da matéria, alguém que acercou-se dos seres vivos para estudá-los, que mergulhou de cabeça na diversidade da vida, “convivendo” com pombos e cães, minhocas e peixes, florestas e oceanos, indo de ilha em ilha, navegando sobre o Beagle, convivendo com as tarturagas, os pássaros… A matéria concreta interessava-lhe imensamente, em especial a matéria concreta que compõe os seres vivos, o que explica por que razão ele fazia-se acompanhar, no trabalho, por tantos crânios de animais mortos. Não era morbidez ou tanatocentrismo. Era curiosidade científica.
Charles Darwin, como mostra o filme, chega até mesmo a ter um relacionamento-de-um-dia, bastante fascinante, com uma orangotanga apelidada de Jenny. Jenny havia sido capturada na mata e vendida ao zoológico de Londres, onde tornou-se o primeiro animal desta estirpe que a maioria dos ingleses via na vida. Darwin, tomando notas diante de Jenny, interagindo e brincando com ela, descobre algo semelhante a uma criança. Jenny tem um comportamento lúdico e exploratório, e tem também capacidade prodigiosa de mímesis do compartamento alheio, o que culmina na cena – belamente retratada em Creation, o filme de Jon Amiel – em que Jenny, depois de ouvir Charles assoprando uma gaita, toma o instrumento musical de suas mãos e arrisca soprar uma canção ela mesma, fazendo uma surpreendente música de macaca, o que muito assombra jovialmente o naturalista.
O lar, porém, segue um problema: a esposa de Darwin tem uma crença a defender, e sempre que pode tenta dissuadir o marido não só da publicação de sua obra, que considera herética e profana, mas também parece querer fazê-lo abandonar suas tendências atéias, thomashuxleyanas. Quando Darwin diz-lhe que talvez esteja chegando a hora de finalmente publicar seus estudos, a esposa pergunta-lhe: “você não teme perder a tua alma imortal? Não teme que nos separemos por toda a eternidade após a morte e que você seja impedido de atravessar o portal do Céu? Você está guerreando contra Deus, Charles! E nós dois sabemos que esta batalha não se pode ganhar.” (Minuto 36 de Creation)
Até que, num belo dia, a filha de Charles, Anne Darwin, de 9 anos de idade, debate com o reverendo, sustentando que os dinossauros de fato existiram, o que o eclesiástico não aceita, mandando punir a criança por sua teimosia em afirmá-lo. Quando Charles Darwin encontra a filha às lágrimas, com os joelhos machucados, após ter sido forçada pelo padre a ajoelhar-se sobre pedras machucantes, o normalmente comedido e contido Charles Darwin irrompe em cólera, revoltado contra alguém que ousa torturar uma criança só porque esta expressou e defendeu uma verdade. A esposa, que desta vez faz-se advogada de defesa da autoridade religiosa autoritária, pergunta-lhe: “precisamos mesmos ter filhos que são revolucionários aos 9 anos de idade?”
O abismo entre dois vai se abrindo, a distância que os separa se escancara.
Na igreja, Charles Darwin ainda pratica mecanicamente os gestos habituais e os convencionados ritos, mas vê-se que não move os lábios para juntar-se ao coro durante os hinos. Além disso, escuta em descrença quando o padre prega que tudo na Natureza segue o desígnio do senhor e que “even a sparrow falls not to the ground without Thy will.” (Creation, parte 2, minuto 3)
O padre então parte para a pregação sobre o Gênesis, livro I, que destaca o domínio, divinamente decretado, que o ser humano deve ter sobre a Natureza. O criacionismo expresso no livro tão fundador para as tradições monoteístas (cristianismo, judaísmo, islamismo) coloca a Humanidade em posição dominadora em relação aos animais, como se estes estivessem aí para nosso serviço, nosso usufruto, nosso consumo, nosso desprezo. Charles Darwin abandona a missa. Sua esposa, que resta solitária, ouve a porta da igreja batendo atrás de si, ecoando por todo o recinto. O homem sem améns, cada vez mais, assumia sua divergência em relação aos dogmas criacionistas e à sua pregação cotidiana sobre os púlpitos dos templos ingleses.
Charles Darwin vivenciou um longo drama íntimo, um processo interno de corrosão da fé religiosa, algo que o torna uma figura de relevância na história da filosofia e da teologia, além de sua inegável revolução operada no domínio da biologia e das ciências naturais. No The Guardian, Nick Spencer escreveu sobre Darwin’s Complex Loss Of Faith. O homem de carne-e-osso, Charles Darwin, assim como seus contemporâneos Friedrich Nietzsche, Ludwig Feuerbach e Karl Marx (para citar somente três figuras de alto impacto histórico), exemplifica as ocorrências subjetivas que metamorfoseiam um crente em um ateu ou agnóstico. A partir de Darwin, podemos estudar o fenômeno da apostasia, quando a fé cai em descrédito e é substituída, às vezes num processo lento e difícil, por uma visão de mundo onde vige um materialismo e um naturalismo nos quais a hipótese de Deus foi excluída por não ser mais necessária, por ter sido reconhecida como falsa, ilusória, enganadora.
Longe de estar “em guerra contra Deus”, como acusa-o sua esposa, Darwin está simplesmente vivenciando o drama íntimo da perda da fé. Vai até o fim, até a consumação deste processo de corrosão da crença. Não volta atrás. Se o ateísmo tem seus heróis, Darwin é certamente um deles, por ter afirmado aquilo que, segundo seu entendimento, era a verdade objetiva, ainda que esta fosse um ataque frontal às crenças religiosas hegemônicas em seu meio social em sua época. Quando enfim decide-se a tornar público o conteúdo, refletido e referendado há décadas por seu autor, de A Origem das Espécies, Darwin sabe que irá apresentar à Humanidade uma explicação da vida que prescinde de Deus, uma teoria onde a noção de Deus tornou-se obsoleta e desnecessária.
A divisão doméstica faz com que o casal cinda, a esposa buscando refúgio na religião, o marido dedicando-se com ardor à ciência. Isso faz com que o lar dos Darwin não seja exatamente um reduto de jovialidade e alegria, concordância e harmonia, apesar dos tons idealizantes e demasiado cinematográficos que Jon Amiel utiliza em seu filme (um autêntico tear-jerker). Charles somatiza o conflito conjugal, adoece corporal e psiquicamente, passa alguns períodos em tratamento, fazendo hidroterapias e tendo conversas proto-psicanalíticas com seu médico.
A fragilidade da vida manifesta-se com toda a força do trauma quando Charles Darwin perde sua filha Annie, após um longo combate (perdido) pela saúde da criança. A morte da filha: não é possível imaginar ou descrever o impacto deste evento na realidade subjetiva de Darwin. Há algo de misterioso e inacessível na dor extrema do outro que talvez convenha nem mesmo sondar, já que sabemos de antemão que não atingiríamos a profundeza dessa dor, a experiência deste luto.
De todo modo, é óbvio que Darwin conheceu vivências trágicas em sua existência, e que se sua visão de mundo pode parecer aos olhos de alguns como trágica e pessimista, talvez isto tenha relação direta com a vida que Charles Darwin viveu e com as perdas que o destino lhe impôs. Com seus últimos alentos, Anne Darwin solicita: “papai, conte-me a história de Jenny e de como ela morreu”. O pai então retoma o fio-da-meada de sua narrativa sobre a macaca com quem ele um dia brincou e que ele, Charles Darwin, ensinou a tocar gaita ao modo símio.
Jenny, a certo momento de sua pneumonia, recusa-se a comer, gentilmente, como quem diz: “obrigado, é bacana da sua parte oferecer-me alimento, mas pra mim chega…”. O filme de Amiel descreve uma macaquinha humanizada, posta em paralelo com Anne Darwin, numa sugestão sublime e subliminar de que os humanos não só evoluíram fazendo parte da mesma trama cósmica que nossos parentes primatas, como também morrem de modo muito semelhante a eles.
Quando enfim termina seu magnum opus, oferece-o numa bandeja para sua esposa: Darwin pede que ela decida qual destino dar à obra. Ela lê, à luz de velas, o fruto do trabalho de Charles, tentando decidir-se se As Origens da Espécie merece a destruição pelo fogo ou se merece ser publicada e lançada ao mundo, doa a quem doer.
Quando ela enfim decide pela publicação, diz a Charles: “Você finalmente tornou-me sua cúmplice.” O abismo entre eles diminuiu e a agora eles têm de novo um vínculo sólido unindo-os. Emma Darwin, apesar de todo seu puritanismo vitoriano, permite ao marido que torne pública a obra que congrega os esforços de pesquisa e reflexão de décadas, mesmo sabendo da profusão de faith-shattering theories que o livro veicula em profusão.
Creation é um filme sublime pois mostra a dança do abismo que separam Emma e Charles um do outro. É um abismo que às vezes abre sua boca abissal a ponto de separá-los em dois continentes distanciados por uma grande oceano. Mas é um abismo que outras vezes fecha sua boca até que transforme-se em distância vencível por pontes.
ESPÉCIES MUTÁVEIS E EXTINGUÍVEIS
O que Darwin rejeita de modo enfático e convicto é a noção da imutabilidade das espécies. Toneladas de provas empíricas deixam claro que as espécies são mutáveis, e que a evolução natural procede por meio de mutações vantajosas, transmitidas aos descendentes, em um processo lento e cumulativo. Se temos dificuldade em aceitar a teoria, pondera Darwin, é por ser tão difícil para o nosso intelecto compreender vastas quantias de tempo. E por ser também muito imperfeito e cheio de lacunas o nosso conhecimento geológico e a nossa capacidade de narrar a história natural nas últimas centenas de milhões de anos.
No capítulo de conclusão de The Origin of Species, Darwin mostra-se consciente de estar divergindo de uma longa tradição de pensamento que desejava afirmar as espécies como criadas por atos independentes de criação, e cada uma delas imutável, teoria criacionista e imutabilista que torna-se absolutamente insustentável diante da massa de evidências coletada e compartilhada por Darwin e seus seguidores:
“Why, it may be asked, have all the most eminent living naturalists and geologists rejected this view of the mutability of species? (…) The belief that species were immutable productions was almost unavoidable as long as the history of the world was thought to be of short duration… But the chief cause of our natural unwillingness to admit that one species has given birth to other and distinct species, is that we are always slow in admitting any great change of which we do not see the intermediate steps. (…) The mind cannot possibly grasp the full meaning of the term of a hundred million years; it cannot add up and perceive the full effects of many slight variations, accumulated during an almost infinite number of generations.”6
De certo modo, Darwin re-embarca no rio de Heráclito e diz, mais uma vez, que “tudo flui”, inclusive as espécies. Nenhuma delas é imutável. A matéria viva é essencialmente dinâmica. A transformação é a sina inescapável de tudo o que vive. Darwin conclama que expressemos claramente a convicção da mutabilidade das espécies, como forma de superar a carga de preconceito e a “cegueira das opiniões pré-concebidas” [the blindness of preconceived opinion] que por tantos séculos sufocou a lucidez humana sobre as produções vivas da natureza.
“Whoever is led to believe that species are mutable will do good service by concientiously expressing his conviction; for only thus can the load of prejudice by which this subject is overwhelmed be removed.” 7
Longe de ser uma doutrina absolutamente devastadora do amor-próprio humano, a teoria de Darwin abre a possibilidade de uma outro tipo de maravilhamento e de assombro, não mais com nossa suposta excepcionalidade, que já caiu em profundo descrédito, mas sim por nossa pertença ao drama da vida como um todo. O darwinismo re-conecta o homem à natureza de modo radical, fazendo-nos sentir a conexão que há entre todos os seres vivos e a imensidão de tempo que a aventura da vida já atravessou até atingir o estágio atual (que é, como a palavra “estágio” tão bem indica, também algo de provisório, o que significa que está sempre presente tanto a possibilidade de superação quando a de extinção).
“All living things have much in common, in their chemical composition, their germinal vesicles, their cellular structure, and their laws of growth and reproduction. (…) Probably all the organic beings which have ever lived on this earth have descended from some one primordial form, into which life was first breathed. (…) When we no longer look at an organic being as a savage looks at a ship, as at something wholly beyond his comprehension; when we regard every production of nature as one which has had a history; when we contemplate every complex structure and instinct as the summing up of many contrivances, each useful to the possessor, nearly in the same way as when we look at any great mechanical invention as the summing up of the labour, the experience, the reason, and even the blunders of numerous workmen; when we thus view each organic being, how far more interesting, I speak from experience, will the study of natural history become!”8
Darwin, nestes apontamentos finais do livro, mostra-se otimista quanto ao futuro das ciências, às quais abrem-se campos de pesquisa antes fechados e proibidos. De uma coisa podemos estar certos: o futuro distante possuirá organismos diversos dos que hoje existem em nosso planeta, já que é inelutável que algumas espécies novas surjam a partir das existentes e que algumas espécies hoje existentes sejam extintas:
“Judging from the past, we may safely infer that not one living species will transmit its unaltered likeness to a distant futurity. And of the species now living very few will transmit progeny of any kind to a far distant futurity…”9
Se o darwinismo representa uma ferida narcísica, uma porrada no amor-próprio da espécie humana, é também pois pinta-nos a possibilidade de um futuro onde estejamos extintos como os dinossauros. Além do mais, como a frase de Darwin citada há pouco sugere, é uma impossibilidade concreta que nossa espécie possa transmitir-se plenamente inalterada [em estado de unaltered likeness] para a futuridade distante [far distant futurity]. É inconcebível que ainda esteja existindo no ano 500.000 depois de Cristo um organismo semelhante ao deste ser humano que escreve estas palavras em um teclado de computador no ano que se convenciou chamar de 2023 d.C.
Darwin reconhece, como é evidente, que na Natureza ocorrem catástrofes e cataclismos: a Geologia como ciência conta-nos de eras glaciais ou tempos idos onde não haviam condições ambientais para a emergência, sobrevivência e evolução da vida. Mas o fato de haver um naturalista, na Inglaterra, refletindo sobre a vida em sua diversidade, tentando decifrar os mecanismos através dos quais os frutos vivos da Natureza vieram à vida e transformaram-se tempo afora, tudo isso é evidência suficiente de que “nenhum cataclismo desolou o mundo todo” [no cataclysm has desolated the whole world], o que é outro modo de afirmar a fortitude e resiliência da vida, que por bilhões de anos pôde sobreviver aos incontáveis e reiterados ataques da morte. A vida ainda vive. E só é capaz de viver na transformação perene.
Heráclito triunfa novamente, no século 19, com as vozes de Darwin e Nietzsche: o universo reganha a fluidez do rio, a corredeira cósmica carrega em seu turbilhão nós, e conosco a teia toda da vida. Darwin pinta-nos um retrato que, no último parágrafo do capítulo que conclui A Origem das Espécies, ele mesmo descreve como uma visão de mundo que tem grandeur. A vida é um prodígio de variabilidade, logo uma sempiterna fábrica de novidades. Este jogo não é misericordioso, pois lança à extinção muitas formas de vida, e lançará no futuro muitas outras que hoje ainda sobrevivem – e a humanidade não deve enxergar-se como exceção ao perigo comum a todas as espécies. Também a nossa espécie pode vir um dia a extinguir-se. De todo modo, estamos condenados à mudança e ao escrutínio radical da Natureza que seleciona os mais aptos e faz perecerem da história natural os espécimens que fracassam na luta pela sobrevivência, the struggle for existence.
Por trás do naturalista britânico, casado com uma elisabetana devota puritana, estava um filósofo radicalmente heraclítico, consciente da mutabilidade essencial a tudo que vive, e que finalizou sua magnum opus com um tema extremamente agonístico, ou seja, o que chama de war of nature e o advém dela, a própria evolução [evolution]:
“Thus, from the war of nature, from famine and death, the most exalted object which we are capable of conceiving, namely, the production of the higher animals, directly follows. There is grandeur in this view of life, with its several powers, having been originally breathed into a few forms or into one; and that, whilst this planet has gone cycling on according to the fixed law of gravity, from só simples a beginning endless forms most beautiful and most wonderful have been, and are being, evolved.”10
É um hino à Natureza dos mais belos já cantados por um homem de ciência, tanto que nestas linhas finais Charles Darwin mais se assemelha a um poeta lírico embriagado pelas Musas, e escreve de modo a lembrar os exaltados versos inflamados por Vênus que o poeta romano epicurista Lucrécio entoou em De Rerum Natura. A evolução fornece-nos amplo motivo para amaravilhamento e assombro. Não há porque temer o niilismo como consequência de uma doutrina que nos reconecta com a Natureza e que restitui a esta todo seu incontornável poderio e inigualável majestade.
O que há de temer é a ignorância do ser humano em relação à sua pertença à Teia da Vida. O que há de temer mais que tudo é a negligência com que tratamos o fato de que hoje a humanidade é agente da sexta extinção em massa da biodiversidade planetária no Antropoceno – um dos grandes temas da escritora Elizabeth Kolbert.
CONFLITUOSIDADE SEM CONCILIAÇÃO ou A VIDA COMO TRAGÉDIA?
Certas reflexões de Darwin, em especial aquelas que versam sobre os fenômenos que ele chama struggle for existence (“luta pela vida”) e the war of nature (“a guerra da natureza”), levam-nos à impressão de que há uma filosofia trágica por trás da obra do naturalista inglês. A Natureza, para Darwin, é menos uma teodicéia que uma epopéia. A epopéia homérica, por exemplo, é um imenso palco onde brilha com força o ágon, o combate, a disputa, a polêmica. Os heróis buscam ser cantados pelos poetas, imortalizados pela palavra, celebrados pelos pósteros, através de seus feitos e proezas na competição.
As tragédias gregas, de acordo com a poetisa e filósofa nietzschiana brasileira Viviane Mosé, trabalham sobre a matéria lendária, re-elaborando velhos temas agonísticos, de modo que tragédia e epopéia revelam-se como duas criações desta civilização também célebre pela invenção dos Jogos Olímpicos e dos concursos de dramaturgia (os poetas trágicos, afinal de contas, competiam para ver quem era o melhor!):
“As tragédias gregas, escritas para serem vistas e ao mesmo tempo ouvidas, quer dizer, encenadas, têm sempre como matéria a lenda heroica; como As Troianas, de Eurípides, que apresenta a situação das mulheres depois que Troia perde a guerra para os gregos. Mas, agora, não é mais um relato, uma sucessão de acontecimentos, mas a representação viva de uma ação; nasce o teatro. Não se trata mais de criar um modelo, mesmo que complexo, trata-se da encenação de um conflito, de um eterno movimento que se perpetua indefinidamente sem conciliação. O herói deixa de se apresentar como modelo para se tornar um problema. (…) A tragédia, portanto, traz um modo de subjetivação que tem a manutenção da contradição como princípio, a eterna luta entre os opostos, a tensão não conciliada. O devir, e não o Ser, é o eixo da subjetividade trágica, que valoriza a eterna tensão entre o indivíduo e a natureza.” 11
Um debate ancestral, portanto, opõe aqueles que idealizam a Natureza como harmônica e pacífica, por um lado, e aqueles que pintam a Natureza como impiedosa e conflitiva, por outro lado. Pensadores como Heráclito, Nietzsche e Darwin parece claramente filiarem-se ao pólo agonístico, de modo que deles emerge uma certa visão de mundo da vida como tragédia. O que é preciso questionar seriamente na sequência desta nossa investigação é o tamanho das tragédias sociais que podem decorrer da crença demasiado irrefletida de que a vida não passa de um campo-de-batalha, de um pega-pra-capar, de um vale-tudo onde nada é proibido na “luta pela existência”.
Fernando Savater, relembrando o diálogo Górgias de Platão, aproveita para questionar uma certa progênie, decerto muito polêmica, do darwinismo, aqueles que costumamos chamar de darwinistas sociais. Savater rememora a disputa entre Sócrates e Calicles – vale lembrar que a dialética, afinal de contas, também tinha muito de ágon, ou seja, era uma esgrima intelectual onde opunham-se como adversários os dois dialogantes, um querendo triunfar sobre o outro.
“[No Górgias de Platão] Calicles sustenta que a primeira ‘lei’ da Natureza diz que os mais fortes e inteligentes têm direito a dominar o resto dos homens e a possuir as maiores riquezas, e por isso considera ‘antinaturais’ e portanto ‘injustas’ as leis democráticas que estabelecem a igualdade de direitos na pólis… Hoje não faltam cientistas sociais ou políticos que dêem razão mais ou menos explicitamente a Calicles em nome da teoria da evolução de Charles Darwin: se a Natureza vai selecionando os indivíduos mais aptos de cada espécie por meio da ‘luta pela vida’, que elimina os mais frágeis ou os que pior se adaptam às circunstâncias ambientais, não deveria a sociedade humana fazer o mesmo e deixar que cada um demonstrasse o que vale, sem levantar os caídos nem subvencionar os torpes? Assim a sociedade funcionaria de modo muito mais ‘natural’ e se favoreceria a multiplicação da raça impiedosa mas eficaz dos triunfadores…”12
Ora, grandes pensadores nunca estão imunes a serem mal-compreendidos por supostos “discípulos”, que distorcem e perverter a teoria dos mestres, e foi o destino histórico de grandes figuras da história intelectual no século XIX tornarem-se “associados” postumamente com aquilo que, em vida, não cessaram de repudiar. Há uma injustiça em culpabilizar Karl Marx pelo stalinismo, Nietzsche pelo nazismo do III Reich ou Darwin pela eugenia racista. No caso deste último, Savater apressa-se em ponderar que “os Calicles modernos” como Francis Galton e Herbert Spencer, supostos discípulos de Darwin, mas na verdade perversos distorcedores da teoria original,
“não leram Charles Darwin com muita atenção. Em The Ascent of Man (seu segundo grande livro, depois de A Origem das Espécies), Darwin sustenta que foi a própria seleção natural favoreceu o desenvolvimento dos instintos sociais – em especial a ‘simpatia’ e a ‘compaixão’ entre os semelhantes – nos quais se baseia a civilização humana, ou seja, o êxito vital de nossa espécie. Para Darwin, é a própria seleção natural que desemboca na seleção de uma forma de convivência que aparentemente contradiz a função da ‘luta pela vida’ em outras espécies, mas que apresenta vantagens de ordem já não meramente biológica, mas social. (…) A sociedade e suas leis ‘artificiais’ são o verdadeiro resultado ‘natural’ da evolução de nossa espécie!”13
De fato, Charles Darwin era um gentleman inglês que, ao contrário do rottweiller Thomas Huxley, agia como um animal mais doce, mantendo-se casado até o fim de seus dias com Anna, apesar das divergências religiosas que os opunham de modo às vezes abissal. Já a vida famíliar de Nietzsche fornece-nos um outro exemplo de conflito, desta vez com outro desenlace: o filósofo, ainda em vida, entra em choque com sua irmã, Elisabeth Nietzsche, em especial a partir da época em que vincula-se a um notório anti-semita, Bernard Forster.
Friedrich e Elisabeth Nietzsche, o casal de irmãos, irão entrar em guerra declarada, ou melhor, romperão as ligações, e isso motivado por uma constelação de causas, sobretudo a cruzada anti-Lou Salomé que a irmã do filósofo empreendeu, preocupadíssima com a influência malsã que aquela mulher poderosa poderia exercer sobre seu irmão. Lou Salomé vs Elisabeth Nietzsche: desconsiderando este conflito, jamais compreenderemos a gênese de outra obra que marcou época, tornando-se um daqueles livros, como foi A Origem das Espécies, destinado ao status de neo-clássico. Falo de Assim Falou Zaratustra, livro nascido da viagem de Nietzsche aos extremos da solidão, aos píncaros de desertas montanhas.
Em sua biografia de Lou Salomé, H. F. Peters pinta para nós um retrato das forças em oposição neste embate entre mulheres antagonistas:
“Uma era ousada e inimiga das convenções [Lou Salomé], a outra, farisaica e mesquinha [Elisabeth Nietzsche]. Tinham fatalmente de entrar em choque. Elisabeth Nietzsche tinha então 36 anos. Passara quase toda a vida com a mãe, na pequena cidade formalista de Naumburg sobre o Saale, onde o pai fora pastor protestante. Criada de maneira convencional, estava imbuída do ideal de respeitabilidade daquela classe média bem-comportada a que a maior parte das moças de sua época prestava obediência inquestionada. Ia regularmente à igreja… Os hábitos pouco convencionais de Lou Salomé, a chocante liberdade de atitude para com os homens, a indiferença pelo comportamento convencional, provocaram em Elisabeth uma repulsa quase física. Como se irmão podia querer ligar sua vida à de tal criatura? E Lou, sentindo a reprovação instintiva de Elisabeth, reagiu, como sempre fazia nessas circunstâncias, exagerando suas excentricidades.”14
Para realizar sua dinamitadora crítica do ideal ascético, como aquele que constitui um dos núcleos da Genealogia da Moral, Nietzsche pôde basear-se em sua própria convivência familiar: filho da austeridade de um lar regido por um pai pastor, filho de outro pastor protestante, Fritz e sua irmã Liz cresceram sob o austero brilho cinza do ascetismo, vendido como chave para ter direito à adentra o Paraíso assim que abrir-se a porta do túmulo. Nietzsche, em sua filosofia, toma claramente partido por Lou-Salomé, seu inconformismo, seu experimentalismo, seu ousado dionisismo, seu desprezo fecundo por convenções paralisantes calcadas em dogmas caducos…
O trabalho magistral realizado em O Bufão Dos Deuses por Maria Cristina Franco Ferraz oferece-nos um valioso retrato dos dilemas íntimos vivenciados por Nietzsche, conforme ele percebia que sua irmã Elisabeth transformava-se em papagaia de doutrinas racistas e proto-nazistas, em especial ao casar-se com o “Dr. Bernard Forster, anti-semita bem conhecido, que em 1881 havia recolhido mais de 250 mil assinaturas numa petição que demandava a Bismarck que interrompesse a imigração de judeus para a Alemanha, comparecera ao festival de Bayreuth principalmente porque respeitava Wagner como partidário do germanismo puro e simpatizante do movimento anti-semita…” 15
Há uma ruptura dupla na vida de Nietzsche – ruptura com Wagner, ruptura com sua irmã Elisabeth – que talvez expliquem mais que quaisquer outras rupturas o porquê de ter sido esta existência tão hiperbolicamente disruptiva. Nietzsche não pôde prosseguir em aliança com o wagnerismo, que tanto entusiasmava-o em sua juventude e que anima como a mais alta das esperanças utópicas o firmamente de seu livro de estréia A Origem da Tragédia, pois Wagner havia traído Dionísio, havia se rendido a Cristo, havia sacrificado a tragédia em prol da Parsifalidade…
Nietzsche abandona Wagner também pela mesma razão que afastou-se de sua irmã com repulsa no princípio da década em que nasceria o Assim Falou Zaratustra. Ambos – Wagner e Elisabeth – manifestavam suas tendências racistas, xenófobas e anti-semitas de modo cada vez mais explícito, o que o espírito livre em Nietzsche não conseguia sentir senão com desprezo, sarcasmo, horror, repúdio, repulsa psicofísica…
As doutrinas filosóficas e as teorias científicas não nascem da paz, mas sim são frutos das vidas conflituosas daqueles que a formularam: Darwin e Emma, Nietzsche e Elisabeth, exemplificam bem o modo como vieram ao mundo alguns das ideias mais impressionantes de nosso atual repertório cultural. O ágon que opera na existência humana concreta transborda para a obra no caso de obras como as de Darwin e Nietzsche. Eles são grandes teóricos do conflito. O que não significa que joguem no mesmo time ou que concordem em tudo.
Como aponta Franco Ferraz no supracitado O Bufão dos Deuses, Nietzsche dispõe da noção de vontade de potência para debater com Spinoza e o darwinismo, como fez no aforismo 349 do quinto livro de A Gaia Ciência, assim sintetizado pela autora:
“Nietzsche afirma que os pensadores do instinto de conservação, tais como Spinoza e, mais recentemente, os naturalistas anglo-saxões, deviam à sua origem social o papel decisivo atribuído, em suas filosofias, a este princípio explicativo, pois eram homens ‘do povo’, de ascendência bastante pobre, frequentemente doentes (como o tísico Spinoza). Habituados a um regime de penúria, teriam generalizado o estado perpétuo de miséria, de falta, estendendo-o a toda a natureza. Ora, segundon Nietzsche, não é a penúria que reina na natureza, mas exatamente seu contrário: a abundância, e até mesmo o mais absurdo desperdício. Já que o impulso vital aspira, por sua própria natureza, a uma expansão de sua potência – e não apenas à sua preservação -, é muitas vezes em função da vida que a conservação é ameaçada e, em alguns casos, sacrificada. Assim, ao contrário de Spinoza e dos darwinistas, Nietzsche considera a vontade de potência, de expansão, própria à vida como o princípio de inteligibilidade da natureza.”16
O conatus spinozista e o struggle for existence darwiniano não parecem a Nietzsche explicações suficientes para dar conta do fenômeno humano: somos aqueles que desejavam não apenas perseverar na existência, mas também aqueles animados pela vontade perene de aumentar nossa potência. O amor e a amizade, em Spinoza, são reconhecíveis pela alegria causada pelo outro quando sentimos na convivência e no intercâmbio que nossa potência-de-existir foi aumentada. O que Nietzsche tem a criticar é uma certa interpretação do conatus spinozista ou do evolucionismo de Darwin em que a primazia recai sobre a conservação, e não na expansão. Nietzsche é um expansionista: julga que o élan vital quer sempre mais, é uma schopenhaueriana vontade de potência que sempre se renova, como a sede mítica de Tântalo, o sempre sedento. A sede de viver é insaciável e atravessa a metamorfose de todas suas formas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DARWIN, Charles. The Origin of Species. Chapter 14, “Recapitulation and Conclusion”. London: Collector’s Library, 2004.
FERRAZ, M. C. F. O Bufão dos Deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
FONTENELLE. Diálogos Sobre a Pluralidade de Mundos. Campinas/SP: Editora da UNICAMP.
GOULD, Stephen Jay. Ever Since Darwin, Prologue, p. 13, New York/London, Norton, 1977
MOSÉ, V. O Homem Que Sabe. Ed. Civilização Brasileira. 2011.
PETERS, H. F. Lou – Minha Irmã, Minha Esposa. Prefácio de Anaïs Nin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
SAVATER, Fernando. As Perguntas da Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
CREATION. Direção de Jon Amiel. Inglaterra, 2009.
NOTAS DAS CITAÇÕES
1 SAVATER, Fernando. As Perguntas da Vida. Capítulo 4: “O Animal Simbólico”. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Pg. 70-71)
2 FONTENELLE. Diálogos Sobre a Pluralidade de Mundos. Campinas/SP: Editora da UNICAMP. Pg. 47
3 FONTENELLE. Op cit. P. 53.
4 GOULD, Stephen Jay. Ever Since Darwin. Prologue, p. 13, New York/London, Norton, 1977
5 CREATION.Filme longa-metragem britânico com direção de Jon Amiel.
6 DARWIN, Charles. The Origin of Species. Chapter 14, “Recapitulation and Conclusion”. London: Collector’s Library, 2004. P. 517-518.
7 DARWIN, op cit. P. 518.
8 DARWIN, Charles. The Origin of Species. Op cit. Pg. 520 – 522.
9 DARWIN. Op cit. Pg. 525.
10 DARWIN. Op cit. Pg. 526.
11 MOSÉ, V. O Homem Que Sabe. Ed. Civilização Brasileira. 2011. Pg. 65.
12 SAVATER. Op cit. Capítulo 7: “Artificiais por Natureza”. Pg. 134.
13 SAVATER. Op cit. Pg. 135.
14 PETERS, H. F. Lou – Minha Irmã, Minha Esposa. Prefácio de Anaïs Nin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. P. 93.
15 PETERS, H. F. Op cit. P. 94.
16 FERRAZ, M. C. F. O Bufão dos Deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. P. 96.
Publicado em: 18/02/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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